quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Dia Mundial da Alimentação…

 

Trago hoje uma memória sofrida do meu povo pury das Regiões de Guiricema - Ainda no século XVIII, os pury meus familiares desceram da Serra da Mantiqueira seguindo as nascentes de águas ali surgidas e foram habitar as margens dos rios, ribeirões e córregos, onde plantavam e semeavam nos espaços sem árvores, às margens das florestas ou nos clarões desarborizados das matas, vivendo em áreas diversas e principalmente nas margens do Rio Bagres, morando da sua margem esquerda até o alto da Serra de Tuiutinga e dai até Muriaé e Guidoval pelo alto das montanhas.

Nos inícios do século XIX tiveram suas terras invadidas por pessoas que se diziam proprietárias das terras, cujos títulos de propriedades nunca viram, mas se firmaram na localidade do primeiro distrito onde se formou sede, na localidade de Cruzeiro (aí uns tais Gregórios), na localidade do Valão (os tais Soares Souza Lima) e em outras áreas próximas outros assumiram, ficando nosso povo sem local próprio para viver, nem mais para onde fugir.

Nas décadas finais do século XIX tais terras foram vendidas em parte para o Povo italiano, que em grande parte plantaram novas matas de cafezais, pois era este o entendimento do povo pury, ficando eles sem nenhum local para plantar os produtos de sua subsistência, restando-lhes os brejas não cultivados por italianos, em cujas margens os pury plantavam arroz, inhame rosa e araruta, que infelizmente se perdia o arrozal quando surgiam as enchentes. Houve um período que adoeceu quase todos os pury da região, para o que a medicina da época reconheceu que era consequência de longo período se alimentando apenas de araruta e inhame, pois estes, quando surgiam as enchentes, destruía-se seus ramos e folhas, mas as raízes permaneciam no solo pantanoso, permitindo serem colhidos e comidos por todos eles, sendo os únicos alimentos que podiam cultivar e colher para sobreviverem.

É doloroso para mim lembrar disto ainda hoje, aos meus 86 anos a completar, mas é necessário levantar a minha voz, para que outros saibam as penúrias e agruras que foram nossos dias de fome, silenciamento, apagamento e miscigenação dirigida através de estratégias e táticas para nossa extinção.

Infelizmente, nunca surgiu alguém interessado em conhecer nossas angústias e registrar os sofrimentos a que estivemos submetidos enquanto existência étnica, de cuja etnia pury se tentou retirar até a dignidade e o caráter purinã, nos desterritorializando e nos deixando à míngua enquanto sobreviventes humanos que somos. Graças a Nhãnhãdú/Dokóra que realmente aprendemos a sobreviver, podendo chegar até aqui e levantar a minha voz: Socorro!!!

Neste dia mundial da alimentação, atentem para a justiça, a empatia, a alteridade, e não continuem a negar aos Povos da Terra o seus direitos de existência e determinação.

Viva o Povo Pury de Guiricema e adjacências!
Que nossos ancestrais gritem comigo: ... Socorro!!!

Muitos ainda sofrem, e talvez morram, em consequência dos ouvidos moucos de quem recebeu a tarefa de governar.

* Felismar Manoel / Nhãmãrrúre Stxutér

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